Teatro e Psicologia.
De Mariana Crochemore
“Há pelo menos uma diferença entre o teatro e a vida! No
teatro temos várias vidas: rei, mendigo, velho, moço, amante, rejeitado (…) É
beber ovinho de uma existência inteira na taça frágil de uma hora…” (Domingos Oliveira).
1. INTRODUÇÃO.
O teatro e a psicologia têm muito em comum, ambos tratam do
mesmo tema: o comportamento humano. O teatro imita a vida e a psicologia tem na
vida o seu objeto de estudo. Em suas articulações vemos a psicologia utilizando
o teatro como recurso em suas diversas áreas de atuação, inclusive de maneira sistematizada como no caso do
psicodrama, na área clínica.
O trabalho pretende enfocar o teatro enquanto expressão
artística e cultural, e, debruçando-se sobre o tema, estabelecer o diálogo
entre teatro e psicologia, visando ainda que de forma introdutória, analisar a
função deste e esboçar um confronto com os mecanismos do processo de construção
de personagem, a partir de constructos teóricos da psicologia.
A primeira parte do trabalho é dedicada a discutir a função
do teatro. Percorrendo desde a origem do teatro, procura revelar nesta
trajetória idéias e símbolos da mitologia grega, a função catártica, a noção do
brincar, o mecanismo da sublimação e algumas contribuições da psicanálise
acerca do artista, focalizando a fantasia, a criatividade, e a arte.
A segunda parte trata da questão do ator. São diferentes os
caminhos que levam a construção da personagem. A psicologia, como ciência que
estuda o comportamento humano, traz em si subsídios esclarecedores para a
construção do ator, podendo cada linha teórica contribuir com seus fundamentos
para um objetivo específico desse processo. Discorrendo sobre o método de
trabalho do ator, enfocarei a questão por um viés junguiano, abrangendo os
conceitos de arquétipos e inconsciente coletivo.
2. O TEATRO
“O teatro tem o tamanho da vida. E dentro dele podemos
exercer a forma mais interessante de sabedoria, que é a loucura sob controle”.
A frase é de Domingos Oliveira (1987), cineasta, ator e diretor teatral. Em
suas reflexões sobre o teatro “Do tamanho da vida”, ele expõe:
“Teatro é ensinamento e diversão, disse Brecht. Mas
ensinamento sobre o quê? Sobre a experiência transcendental. Transcender é cair
no real. O teatro tem como finalidade ajudar o seu espectador a entender-se
como indivíduo dentro de um contexto mais amplo. Essa é a experiência
transcendental a que me refiro, necessária e deliciosa que talvez o teatro
possa proporcionar”.
O teatro é a expressão humana que lhe traduz a própria
existência. O teatro pode ser compreendido como um rito através do qual se
revela um mito. Segundo Brandão (1991), o rito possui o poder de suscitar ou
reafirmar o mito. É através do rito que o homem incorpora o mito, se
beneficiando de todas as suas forças e energias que jorraram nas origens.
A ação ritual realiza no imediato uma transcendência vivida.
O rito reiterando o mito aponta o caminho, oferece um modelo exemplar,
colocando o homem na contemporaneidade do sagrado. O autor conceitua o mito
como, a narrativa de uma criação, ocorrida nos tempos primordiais quando uma
realidade passou a existir. O mito expressa o mundo e a realidade humana, mas
cuja essência é efetivamente coletiva transmitida através de várias gerações.
Decifrar o mito é, pois, decifrar-se.
Ao se fazer essa analogia entre o teatro e um ritual, entre
a peça e um mito, percebemos essa contemporaneidade do sagrado, como a tomada
de consciência, a elaboração das identificações e a própria catarse emocional
pela qual sofre o espectador ao assistir uma peça teatral. O drama, como diz
Freud (1904), é a forma de tornar acessíveis fontes de prazer ou satisfação na
nossa vida emocional, grande parte das quais é de forma inacessível.
Em seus estudos sobre o processo criativo, Freud (apud. Fine,
1981)2 verifica que, “como muitas vezes o drama se ocupa do sofrimento, o
prazer do espectador deriva-se de uma dupla ilusão: primeiro que é o outro e
não ele que está representando e sofrendo no palco, depois porque afinal se
trata apenas de um jogo que não representa perigo para sua segurança pessoal”.
Diz ele que, os conflitos retratados no palco devem estar dentro do âmbito da
experiência do espectador, assim haverá um entre jogo entre o autor e a
audiência. A arte teria o caráter de prazer antecipado, e nosso prazer com uma
obra imaginativa depende de uma liberação de tensões.
O estado no qual entramos ao assistir a uma peça teatral,
podemos dizer que se aproxima de um estado de rebaixamento de consciência. Vale
à pena a longa citação de Barthes (1975), que traça interessante comparação
entre o estado do espectador e um estado pré-hipnótico, uma vez que o estado
hipnótico, era a condição introdutória e necessária, na utilização do método
catártico para o tratamento psicanalítico em seus primórdios.
“Tudo se passa como se mesmo antes de entrar na sala, as
condições clássicas da hipnose lá estivessem reunidas: vazio, receptividade,
desocupação. Não é diante da peça e pela peça que se sonha”: é sem saber, antes
mesmo de vir a ser espectador. Existe uma situação de teatro e essa situação é
préhipnótica. Segundo uma metonímia verdadeira, o escuro da sala é anunciado
pelo ‘sonho crepuscular’ que precede este escuro e conduz o sujeito, de rua em
rua, de cartaz em cartaz, a mergulhar finalmente num cubo obscuro, anônimo,
indiferente, onde deve se produzir este festival de sentimentos”
Um forte atrativo que se faz presente na situação teatral, é
a posição de voyer ocupada pelo espectador, Metz (1983) afirma que o
exibicionismo é bilateral na materialidade das ações, pois repousa sobre o jogo
das identificações cruzadas sobre “o vai e vem assumido do eu e você”. O autor
prossegue dizendo haver um empuxo não divisível do desejo de ver que requer
dois aspectos: ativo/passivo, sujeito/objeto, ver/ser visto. O exibido sabe que
é olhado, deseja que assim seja, identifica-se com o voyer de que é objeto
(mais que o constitui como sujeito). Aí se coloca a relação presencial como
condição para a efetivação do voyerismo. Ator e espectador estão presentes um
no outro.
O exibicionismo e o voyerismo existem enquanto relação de
identificação, um depende do outro.
Identificamo-nos instintivamente com os protagonistas
criados e reagimos a seus antagonistas como se nós estivéssemos no palco.
Projetamos no cenário, fazemos nossa a mobília, sentimos o
diálogo como se fosse saído de nossas próprias bocas, conhecemos a ambivalência
de amor e ódio, atingimos idêntico nível de crise e clímax,e apenas na medida
em que se dá a resolução dos conflitos, é que vamos gradativamente
recobrar-mo-nos como platéia. Identificamo-nos com o seu ego, seu super-ego, e
também o seu id.
Cada membro da platéia vai responder como indivíduo e como
membro do grupo. Pode-se dizer que o inconsciente do indivíduo reage ao nível
de inconsciente da representação, de forma que tanto o público quanto o ator
sentem que o fazem juntos. Courtney (1980) salienta que, os espectadores se
relacionam em três níveis da experiência teatral: com o enredo, a experiência
da ação, e a personagem. Sintetizando também o conteúdo, a intenção, e a
coerência da peça. Portanto no teatro a presença do público é um pré-requisito,
que participa na criação da forma final da arte. O escritor cria o texto, o
ator representa, o diretor reúne as partes, e a platéia reage. Sem a reação do
público, a arte como forma é quase inexistente.
Bibliografia:
TEATRO E PSICOLOGIA
de Mariana Crochemore
1 OLIVEIRA, D. Do tamanho da vida – reflexões sobre o
teatro. RJ,
INACEN, 1987, p. 12
2 FINE, R. A hitória da Psicanálise. RJ, Livros técnicos e
científicos,
1981, p. 209
3 BARTHES, R. En Sortant Du cinéma. In: Communication, n.
23, 1975
4 BRANDÃO, J. Mitologia Grega. Vol. II Petrópolis, Vozes –
4ª Ed.
1981, p. 132
5 WINNICOTT, D. O Brincar e a realidade. RJ. Imago, 1975, p.
80
6 JABLONSKI, B. em “Catarse da agressão” – Dissertação de
Mestrado
– PUC/RJ, 1978, pp1-2
7 FINE, R. A história da psicanálise. RJ, Livros técnicos e
científicos,
1981, pp212-213
5) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXANDER, F. Fundamentos da Psicanálise – RJ, Zahar, 1965.
BARTHES, R. En sortant du cinéma. In: Comumunication n. 23,
1975.
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1979.
BRANDAO, J. Mitologia Grega – vol. I – Petrópolis, Vozes,
1991.
BRANDAO, J. Mitologia Grega – vol. II – Petrópolis, Vozes,
1991.
COURTNEY, R. Jogo, teatro e pensamento – SP, Perspectiva,
1980.
FADIMAN, J. e FRAGER, R. Teorias da personalidade – SP,
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FINE, R. A história da psicanálise – RJ, Livros técnicos e
científicos,
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FREUD. S. Os pensadores – SP, Abril cultural, 1978.
JABLONSKI, B. Catarse da agressão – dissertação de mestrado
–
PUC/RJ, 1978.
JUNG, C.G. O homem e seus símbolos – RJ, Nova Fronteira,
1964.
METZ, C. História e discurso – nota sobre dois voyerismos.
In:
KRISTEVA, J.
MILNER, J. e RUWET, N. (org.) Língua, discurso e sociedade.
SP,
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MEICHES, M. e FERNANDES, S. Sobre o trabalho do ator – SP,
Perspectiva, 1999.
OLIVEIRA, D. Do tamanho da vida – reflexões sobre o teatro –
RJ,
INACEN, 1987.
WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade – RJ, Imago, 1975.
WINNICOTT, D.W. A criança e seu mundo – RJ, Zahar, 1975.
Trabalho de Conclusão de Curso realizado em julho de 2002
Orientador: Bernardo Jablonski
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Centro de
Teologia e Ciências Humanas
Departamento de Psicologia
Texto reproduzido do blog: andreteatro.blogspot.com.br
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