sábado, 14 de março de 2020

Molière, as pancadas e as histórias do teatro


Publicado originalmente no site JORNAL DE TEATRO, em 03 de dezembro de 2013

Molière, as pancadas e as histórias do teatro

Por Adoniran Peres

 Dez minutos antes de começar o espetáculo toca o primeiro sinal. Cinco minutos depois, toca o segundo. Quando toca o terceiro, aí, sim, as luzes se apagam, abrem-se as cortinas e o silêncio, assim sugerido, dá espaço à viagem, na qual tudo é possível: o público mostra-se visivelmente preparado para embarcar, a história é contada, a mensagem é lançada  e os artistas, consequentemente, já estão concentrados para encarnar os personagens. Por mais estranho que possa parecer, tudo tem uma origem e esses sinais têm uma história.

No teatro vicentino, os sinais eram manifestados através de gritos. Já  no século XVII, na França, criado por Molière, foi batizado de “as pancadas”. Naquela época, a plateia francesa era barulhenta e agitada, as peças tinham uma cena inicial para acalmar o público e impor o silêncio. Com o mesmo objetivo, Molière criou as suas três pancadas, usadas até hoje para avisar à plateia que o espetáculo vai começar.

Segundo Pablo Moreira, coordenador do curso de artes cênicas da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), o número das pancadas de Molière eram várias e não existia uma formalidade na quantidade, como hoje, com as campainhas. “Primeiro ele tentava acalmar o público com várias pancadas com as batutas ou um pedaço de madeira no chão. Depois, quando a plateia já estava calma, vinham as três pancadas em uma mesma sequência”, revela.

Segundo Edélcio Mostaço, professor de História da Arte, da Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina), entre as pancadas e o sinal há uma longa evolução da prática no teatro. Todavia, o objetivo é o mesmo: avisar que a peça irá começar. “Se alguém vai ao banheiro ou comprar balas, por exemplo, sabe que tem um tempo determinado para voltar. Considere que esses sinais surgiram em uma época na qual os teatros eram imensos e antigos, a plateia ficava circulando pelos corredores antes do início da peça e ir de um lugar a outro era longe. Por outro lado, os espetáculos reuniam dezenas de artistas, que ficavam dispersos nos camarins. Os sinais eram operados pelo contrarregra, como convenção para a reunião geral de artistas (no palco) e público (sentados na plateia) para abrir o pano”, explica Edélcio.

O professor da Udesc acrescenta, ainda, que as famosas “pancadas de Molière” surgiram em função das especificidades do fazer teatral no período. As apresentações eram realizadas no Palácio de Versalhes, residência do rei Luiz XIV e sua corte, em um ambiente no qual não havia divisão rígida entre palco e plateia. Era apenas um amplo salão do palácio, não uma sala de espetáculos. Como a corte era ruidosa e não havia iluminação elétrica naquela época, o modo encontrado de marcar o início do espetáculo foi através de ruídos – pancadas no chão – para fazer silêncio.

Segundo o professor da Udesc, esse hábito se disseminou nas demais cortes de toda a Europa. Após o surgimento dos teatros com iluminação elétrica, os momentos anteriores ao espetáculo eram marcados com uma campainha (sinais para as pessoas seguirem para os camarotes e frisas) e com o escurecimento da sala. Pablo Moreira acrescenta que, naquela época, era comum fazer as refeições nos teatros. “Além de ser o ponto de encontro da população, o que causava uma grande bagunça”, diz.

Pancadas

Hoje, na maioria dos textos sobre teatro disponíveis em sites e blogs na internet, é possível se constatar que a palavra campainha é trocada pela antiga “Pancadas de Molière”. Um grupo de teatro chamava a atenção pelo nome – As Pancadas de Molière não dói (sic), uma mistura do funk carioca “Um Tapinha não Dói” –  com as históricas pancadas. Atualmente, o grupo usa o nome Pancadas. Segundo Moreira, a palavra, quando trocada, pode ser usada e soar como ironia, dependendo do tom e da circunstância que o autor utiliza. “No próprio espetáculo, hoje podemos interpretar as campainhas como uma metáfora. O barulho da campainha ainda faz a aproximação entre os artistas e a plateia. Quer dizer: atenção! Pode ser entendida como uma maneira de que é a hora abrir a cabeça para o início da apresentação ou qualquer questão que possa imaginar”, explica Moreira.

Molière e o teatro na França

O primeiro teatro público francês surgiu em 1548, mas apenas no século XVII surgiram os mais célebres autores franceses dos tempos modernos: Corneille e Racine, que escreveram tragédias, e Molière, que foi o criador de adoráveis comédias.  Molière, com as pancadas, escreveu uma parte da história do teatro, mas o capítulo mais importante de sua biografia ficou por conta da Comédie Française, primeira companhia pública oficial de teatro do mundo, fundada por ele, em 1680, e abençoada – ou patrocinada – por Luiz XIV, no século XVII. “Essa sede está em funcionamento até hoje, ao lado do Palácio Real. As peças dos grandes autores franceses, como de Corneille, Racine e Molière ainda são encenadas”, explica o professor da PUC-SP. Entre as obras de Molière estão “As Preciosas Ridículas”, representada em 1659, “O Burguês Fidalgo”, de 1670, e “O doente Imaginário”, de 1673.

Do povo

Segundo Moreira, Molière escreveu uma nova forma de fazer teatro e, mesmo criando temas dentro da peça que contrariavam o governo da majestade da França, ainda assim conseguiu o respeito de Luiz XIV. “Molière era um grande autor de comédia popular. Além de levar as suas peças para a população, se apresentava também com exclusividade para o rei em seu palácio. Quando a peça era apresentada aberta para população, Luís XIV chegava a subir até ao palco para participar. “Ele fazia também duras críticas à aristocracia e, mesmo assim, era muito respeitado por Luiz XIV”, destaca.

O professor da PUC-SP explica ainda que, contrariando as formalidades das formas criadas por Aristóteles na execução de uma peça, Molière trouxe novas características para as encenações, na qual não se respeitava o tempo nem a estrutura de uma peça. Ele fazia comédias para o povo e retratava o povo com temas da vida cotidiana, em que os contrários se confrontam.

“Parecia que tinha um pé onde estavam os menos favorecidos financeiramente, que é da onde veio, e outro na aristocracia. Molière sabia lidar com essas questões e ainda conseguia ser respeitado. Ele inventou de forma inteligente uma nova maneira de fazer teatro e conseguia fazer isso contrariando o poder, sem ser censurado”.

Segundo Moreira, Molière usava muito da improvisação, elaborava cenas de aproximação dos artistas com a plateia, permitia uma fala mais coloquial, fazia uma comunicação crítica com brincadeiras, contextualizando as questões sociais e, às vezes, até criticava os próprios atores durante a peça. Além de tudo isso, ele ainda inovou, ao colocar mulheres para encenar, algo que até então não acontecia”, finaliza.

Texto e imagem reproduzidos do site: jornaldeteatro.com.br

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